Em 1886 o escritor britânico Robert Louis Stevenson escreveu o romance intitulado “Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde”, narrativa sobre uma ficção londrina, do século XIX, no qual o gentil e pacato médico Henry Jekyll, criando uma fórmula, tenta provar que o bem e o mal habitam em todas as pessoas, o “resumo da ópera”, sabemos, tornou-se vítima da sua própria experiência.
Enquanto estudioso do Direito, resta-me a impressão que o STF, ao invés de promover justiça e paz, faz “experiências” dualistas, contraditórias existencialmente, e que, como no romance, também podem, mais adiante, fugir ao seu controle.
Refiro-me ao fato da Corte Suprema, em julgamento ainda em andamento, estar formando maioria para referendar a teratológica possibilidade de prisão após o julgamento pelo Tribunal do Júri.
No campo jurídico, acadêmico e institucional, travou-se, ainda recentemente, uma luta hercúlea no país, para consecução de um resultado justo, equilibrado e de respeito extremo às garantias constitucionais, por ocasião do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, reconhecendo-se a constitucionalidade do art. 283 do CPP e, consequentemente, reafirmando-se a garantia da presunção de inocência, inscrita no art. 5º LVII da Constituição da República.
O dualismo “Hydeano” no STF, habita, sobretudo, no coração e mente “iluminista” de quem, pretensamente, conhece(?) o constitucionalismo.
Não se afigura minimamente razoável que, numa Corte Constitucional, ministros pretendam justificar a prisão após o julgamento pelo Tribunal do Júri, baseando-se no princípio da soberania dos vereditos (artigo 5º, XXXVIII, C, da CF/88), em detrimento e ferindo de morte o princípio da presunção de inocência, por eles mesmos referendado, recentemente, por ocasião do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, esquecendo-se, a “maioria” deles, que essa iniciativa importa utilizar um “direito e garantia fundamental”, em desfavor do cidadão.
Explico!
O que alguns ministros estão fazendo, implica em tentar usar um direito e garantia fundamental, existente no rol do artigo 5º (soberania dos vereditos), criado para proteger o cidadão com a validação e a certeza do veredito, quando do julgamento por pessoas do povo, para tentar invalidar uma outra garantia (presunção de inocência), sendo ambas fundamentais e de defesa da dignidade do cidadão.
Tentam “iluminar” o debate com um espectro contraditório (dualismo), de sobreposição de garantias fundamentais, em que, na perspectiva de alguns ministros, é mais importante deferir ao Tribunal do Júri a sua garantia de soberania (veredito), do que garantir ao cidadão a sua liberdade (presunção de inocência), ambas garantias previstas no mesmo artigo, mesmo título e mesmo capítulo da Constituição da República.
O “debate supremo”, inclusive, torna mais pueril a invalidação de direitos e garantias fundamentais, quando, ao arrepio do princípio da hierarquia das normas, busca submeter, a fórceps, a Constituição da República, ao que fora introduzido pela Lei 13.964/19 (embrulho anticrime), com a nova redação do art. 492, E, do CPP, ao nosso sentir, inconstitucional (caso de não recepção), que autoriza a execução provisória da pena, nas hipóteses de condenações iguais ou superiores a 15 anos de reclusão.
Parece-nos, novamente, que o debate estabelecido por ocasião do julgamento das ADCs 43, 44, e 54, sofreu uma “modulação” da matéria constitucional, por meio de norma hierarquicamente inferior, sufragando-se uma modalidade de prisão antecipada, em razão do quantum da pena em concreto, em detrimento da constitucionalidade do art. 283 do CPP (assim declarado pelo STF) e do próprio art. 5º, LVII da Constituição da República (presunção de inocência).
Para quem não acompanha o nascimento e construção dos debates, essa discussão voltou à pauta a partir do julgamento do Habeas Corpus 118.770 SP, junto à Primeira Turma do STF, em março de 2017, e depois ratificado o entendimento no HC 139.612 MG, no qual a soberania dos vereditos justificaria a prisão, sem violar a presunção de inocência(?), até chegarmos ao debate, em curso, do Tema 1068 de repercussão geral, no julgamento do RE 1.235.340 SC.
Vejam que a teratologia tem nascedouro em 2017, e o ovo da serpente está eclodindo somente agora, em 2023, a partir do dualismo comportamental de um Supremo Tribunal Federal que não consegue se definir, relativamente aos direitos e garantias fundamentais, e à liberdade do cidadão, se vai ter a gentileza e sobriedade do Dr. Jekyll, ou a agressividade e inconstância do Mr. Hyde.
Só não me peçam, em meio a essa variação de humor do comportamento decisório, que eu, enquanto professor e advogado criminalista, aplauda as luzes que “iluminam”(?) esse espetáculo antigarantista e extremamente punitivista, que tenta naturalizar um novo atentado à presunção de inocência, usando-se contra a liberdade do cidadão, justamente, um outro direito e garantia fundamental (soberania dos vereditos) e, sobretudo, um “embrulho anticrime”, o qual já nasceu tristemente inconstitucional e, especialmente, proposto por uma figura punitivista que, segundo o próprio STF, fora alguém “parcial”, quando a imparcialidade lhe era exigida por lei.
Ao epílogo, vejo que meus escritos serão sempre relegados ao plano do simples lamento, quando, lendo o “iluminado” voto do Eminente Ministro Relator, deparo-me com a afirmação de que — “a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes” (Fl. 09 do voto).
Quanto a isso, não há o que dizer, debater ou criticar, mas apenas lamentar, e tentar domar o Mr. Hyde que pode habitar em mim, ciente de que a maior lição do escritor britânico Robert Louis Stevenson, foi registrar — o bem e o mal — que podem habitar em todas as pessoas, desde as que são julgadas pelo Tribunal do Júri, até aquelas detentoras da nobre missão de julgar junto ao STF.
JAMES WALKER JR
Advogado criminalista desde 1991, professor universitário desde 1994, pós-graduado em Direito e Processo Penal, Especialista em Direito Penal e Compliance pela Universidade de Coimbra – Portugal, Especialista em Compliance pela Fordham University Law School – New York, Mestre e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa, Vice-diretor da Diretoria de Valorização da Advocacia da OAB-RJ, Conselheiro da OAB-RJ, Membro Efetivo do IAB, Catedrático da ANE – Academia Nacional de Economia (titular da cátedra 155), Presidente da Comissão de Anticorrupção, Compliance e Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-RJ, Membro das Comissões de Compliance e de Direito Penal do IAB, Membro da Comissão de Direito Penal Econômico do Conselho Federal da OAB, Auditor-lider em Compliance pela ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, Presidente do IBC – Instituto Brasileiro de Compliance, Presidente da ANACRIM – Associação Nacional da Advocacia Criminal, sócio do Escritório Walker Advogados Associados, autor/coautor de diversas obras jurídicas.